Hoje é o Dia Mundial da Doença de Alzheimer no Brasil.
Para começarmos a entender a doença, deixamos abaixo um discurso que deu abertura a um congresso que reuniu profissionais de diversas áreas e familiares de idosos. Esse texto foi escrito por uma pessoa que tem o diagnóstico de Alzheimer.
“Bom dia. Sou a Dra. Alice Howland, mas não trabalho com neurologia nem com clínica geral. Meu doutorado é em psicologia. Fui professora da Universidade Harvard por 25 anos. Lecionei cadeiras de psicologia cognitiva, conduzi pesquisas no campo da lingüística e dei aulas e palestras no mundo inteiro.
“Mas hoje não estou aqui para lhes falar como especialista em psicologia nem em linguagem. Estou aqui hoje para lhes falar como especialista na doença da Alzheimer. Não trato de pacientes, não dirijo ensaios clínicos, não estudo mutações de DNA nem oriento pacientes e seus familiares. Sou especialista nesse assunto porque, há pouco mais de um ano, fui diagnosticada com a doença de Alzheimer de instalação precoce.
“Sinto-me honrada por ter esta oportunidade de lhes dirigir a palavra hoje, na esperança de proporcionar alguma compreensão sobre o que é viver com a demência. Dentro em breve, mesmo que ainda saiba como é isso, não serei capaz de expressá-los a vocês. E, logo depois, já nem saberei que tenho demência. Portanto, o que tenho a dizer hoje vem na hora certa.
“Nós, nos primeiros estágios da doença de Alzheimer, ainda não somos completamente incompetentes. Não somos desprovidos de linguagem nem de opiniões importantes, nem de períodos extensos de lucidez. Mas já não temos competência suficiente para que nos sejam confiadas muitas demandas e responsabilidades de nossa vida anterior. Temos a sensação de não estar nem cá nem lá, como um personagem doido do Dr. Seuss numa terra bizarra. É um lugar muito solitário e frustrante para se estar.
“Já não trabalho em Harward. Já não leio nem escrevo artigos nem livros sobre pesquisas. Minha realidade é totalmente diferente do que era, não faz muito tempo. E é distorcida. As vias neurais que utilizo para compreender o que vocês dizem, o que penso e o que acontece à minha volta estão obstruídas por amilóides aderentes. Luto para encontrar as palavras que quero dizer e muitas vezes me ouço dizer as palavras erradas. Não posso confiar na minha avaliação das distâncias espaciais, o que significa, que derrubo coisas, levo muito tombos e sou capaz de me perder a dois quarteirões de casa. E minha memória de curto prazo está por um fio, um fio esgarçado.
“Estou perdendo meus ‘ontens’. Se vocês me perguntassem o que fiz ontem, o que aconteceu, o que vi, senti e ouvi, eu teria muita dificuldade para fornecer detalhes. Talvez acertasse alguns palpites. Sou excelente em matéria de palpites. Mas a realidade é que não sei. Não me lembro de ontem nem do ontem antes dele.
“E não tenho nenhum controle sobre os ‘ontens’ que conservo e os que são apagados. Não há como negociar com esta doença. Não posso oferecer a ela os nomes dos presidentes dos Estados Unidos em troca dos nomes dos meus filhos. Não posso lhe dar os nomes das capitais dos estados e conservar as lembranças de meu marido.
“Temo com freqüência o amanhã. E se eu acordar e não souber quem é o meu marido? E se não souber onde estou nem me reconhecer o espelho? Quando deixarei de ser eu mesma? Será que a parte do meu cérebro que responde por minha personalidade é vulnerável a esta doença? Ou será que minha identidade é algo que transcende neurônios, proteínas e moléculas de DNA defeituosas? Estarão minha alma e meu espírito imunes à devastação da doença de Alzheimer? Acredito que sim!
“Ser diagnosticada com esta enfermidade é como ser marcada com um A escalarte. Agora eu sou isto: uma pessoa com demência. Por algum tempo, foi assim que me defini, e é assim que os outros continuam a me definir. Mas não sou aquilo que digo ou faço, ou aquilo de que me lembro. Fundamentalmente, sou mais que isso.
“Sou esposa, mãe e amiga, e logo serei avó. Ainda sinto, compreendo e sou digna do amor e da alegria dessas relações. Ainda sou uma participante ativa da sociedade. Meu cérebro já não funciona bem, mas uso meus ouvidos para uma escuta incondicional, meus ombros para que outros chorem neles, e meus braços para abraçar outras pessoas com demência. Por meio de um grupo de apoio para doentes em estágio inicial, por meio da Rede Internacional de Apoio e Defesa da Demência, e falando com vocês aqui, hoje, estou ajudando outros pacientes com demência a conviverem melhor com ela. Não sou uma pessoa moribunda. Sou alguém que vive com a doença de Alzheimer. E quero fazê-lo tão bem quanto me for possível.
“Eu gostaria de incentivar o diagnóstico precoce, para que os médicos não presumam que as pessoas que tem problemas de memória e cognição na casa dos 40 ou 50 anos estão deprimidas, estressadas ou na menopausa. Quanto mais cedo formos corretamente diagnosticados, mais cedo poderemos iniciar a medicação, na esperança de retardar o avanço da doença e de nos mantermos num patamar estável por tempo suficiente para colher os benefícios de um tratamento melhor, ou de uma cura próxima. Ainda tenho uma esperança de cura, para mim, para meus amigos com demência, para minha filha que tem o mesmo gene mutado. Talvez eu jamais consiga recuperar o que já perdi, mas possa conservar o que tenho. E ainda tenho muito.
“Por favor, não olhem para o nosso A escalarte e nos descartem. Olhem-nos nos olhos, falem diretamente conosco. Não entrem em pânico nem encarem nossos erros como uma ofensa pessoal, porque nós erraremos. Vamos nos repetir, pôr coisas nos lugares errados e nos perder. Esqueceremos o seu nome e o que vocês disseram há dois minutos. E também tentaremos ao máximo compensar e superar nossas perdas cognitivas.
“Eu os incentivo a nos capacitarem, não a nos limitarem. Quando alguém tem uma lesão na medula espinhal, quando alguém perde um membro ou tem uma deficiência funcional por causa de um derrame, as famílias e os profissionais de saúde se empenham arduamente em reabilitar essa pessoa, em descobrir modos de ajudá-la a enfrentar e a superar os problemas, apesar de suas perdas. Colaborem conosco. Ajudem-nos a desenvolver instrumentos para funcionar, contornando nossas perdas de memória, linguagem e cognição. Estimulem a participação em grupos de apoio. Podemos ajudar uns aos outros, tanto os pacientes com demência quanto os que cuidam deles, a navegar por essa terra do nem lá nem cá do Dr. Seuss.
“Meus ontens estão desaparecendo e meus amanhãs são incertos. Então, para que eu vivo? Vivo para cada dia. Vivo o presente. Num amanhã próximo, esquecerei que estive aqui diante de vocês e que fiz este discurso. Mas o simples fato de eu vir a esquecê-lo num amanhã qualquer não significa que hoje eu não tenha vivido cada segundo dele. Esquecerei o hoje, mas isso não significa que o hoje não tem importância.
“Já não me pedem para dar palestras sobre a linguagem em universidades nem em conferências de psicologia pelo mundo afora. Mas hoje estou aqui, diante de vocês, fazendo o que espero ser a palestra mais importante da minha vida. E eu tenho a doença de Alzheimer.
“Obrigada.”
(Trecho retirado do livro “Para Sempre Alice” de Lisa Genova, Editora Nova Fronteira)